13 fevereiro 2006

After

“Chega um dia sobre nós o dia feito em cinza. Está ainda escuro quando acordamos (…) Lembramos vagamente ter adormecido na véspera, lembramos um crepúsculo em que atirámos ao fogo um último gesto, uma palavra que não deixou de ser digna, embora fosse desamparada. Caiu na fogueira porque ninguém a apanhou. (…)
Ninguém havia ali, estendendo-nos a mão do desejo ou da mentira, nada importa, para nos fazer saltar a dança das chamas (…) Nesta altura de cinza, recordamos que somos sozinhos o despojo da festa, um copo vazio e o fição arrefecido. Respiramos cinzas e engasgamos de sede (…).
Tento mexer-me e nenhum grão de cinza se levanta, nenhum grão do meu corpo. Não há corpo. Desapareci por imolação. (…)
A nossa sombra é mínima. Ardemos por dentro, em silêncio, diante de outras tochas caladas. (…)
Por que te conto tudo isto? (…) Não tenho nada para dizer-te, nem sequer que a minha última brasa rejeita o alívio de uma gota de água, nada, nada se diz ao rio que foge (…)
Apenas queria escrever-te. Com dedos de carvão que se desfazem em cada letra que tento despejar no papel.”

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